quinta-feira, 9 de junho de 2016

Roubado é mais gostoso?


Em 2014, o Flamengo foi campeão carioca ao derrotar na final o Vasco com um gol aos 45 minutos do segundo tempo. O gol, marcado pelo meio-campista Márcio Araújo em posição irregular, gerou muita polêmica. Pior, logo após o apito do juiz, ainda no gramado, o goleiro Felipe, do Flamengo, demonstrou não se importar com o fato do gol ter sido irregular e afirmou: "roubado é mais gostoso".
 
A frase não surgiu do nada. É algo constantemente falado entre torcedores de diversos clubes do país e revela algo sintomático: pra boa parte dos torcedores, os critérios de justiça são completamente maleáveis, desde que favoreçam seu próprio time.
 
E por que será que aceitamos o resultado de uma partida mesmo com erros grosseiros de arbitragem? Por que não se joga o campeonato de novo? Por que o time perdedor espera o ano seguinte para tentar o título? Basicamente, todos ali entram em acordo sobre as regras do jogo antes de começar a partida (ou antes de começar o campeonato). Além disso, há a concordância que alguém legitimado por ambos irá arbitrar sobre as irregularidades, baseado nas regras acordadas e legitimado sob uma suposta neutralidade.
 
O exemplo do futebol é meramente ilustrativo, mas a ideia é a mesma para a política: cidadãos disputam cargos políticos em eleições livres sob regras previamente divulgadas e acordadas entre os concorrentes. Quem ganhou governa, quem perdeu espera as próximas eleições para tentar ocupar o comando.
 
Mas que regra é essa? É a vontade da maioria? Quer dizer que democracia representa a vontade da maioria? NÃO!!!!
 
O quê? Não?
 
É preciso atenção aqui: democracia não é um tipo de ditadura da maioria[1], como podem pensar alguns. Nem sempre o candidato vencedor representa a maioria. Mesmo contando com a maioria dos votos, há coisas que o vencedor não pode fazer, mesmo que seja a vontade da maioria. Por isso, mudanças na Constituição precisam do apoio de 2/3 do parlamento, e as cláusulas pétreas da Constituição não podem ser alteradas nunca (salvo nova constituinte que elaboraria uma nova Constituição)!
 
Outro aspecto importante é que não é preciso que um candidato seja a preferência da maioria para ser legitimado. Vejamos: desde a redemocratização, em nenhuma eleição presidencial o(a) candidato(a) obteve a maioria do eleitorado. Se somarmos os votos de outros candidatos, votos brancos, nulos e abstenções, o voto do primeiro colocado sempre foi inferior à maioria. Mesmo se retirarmos as abstenções da conta, mesmo assim o vencedor nunca obteve uma votação superior à metade do eleitorado no 1º turno.


Indignação seletiva
Os recentes acontecimentos políticos no Brasil vêm mostrando que nossa democracia e nossas instituições democráticas ainda sofrem pra se consolidar. Mesmo utilizando o aparato jurídico para derrubar Dilma Rousseff, a ascensão de Michel Temer à presidência foi feita com base em acordos pra lá de duvidoso.
 
Além disso, as decisões jurídicas e políticas parecem ter dois pesos e duas medidas.  Como exemplo, a opinião pública caiu em cima (com razão) da nomeação de Lula para ministro em meados de março, porém a indignação com os áudios envolvendo políticos do PMDB e a derrubada dos ministros de Temer (Romero Jucá; Fabiano Silveira; Fábio Medina Osório) ainda não parecem ter ganhado a mesma dimensão.
 
Se pensarmos o lado oposto, destituído do poder, também percebemos uma certa indignação seletiva. O afastamento do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) não encontrou resistência da opinião pública, ainda que tenha sido questionada juridicamente. Quando vimos muitos comentários sobre “duplo twist carpado” de lei, significa que estão interpretando as leis do modo mais conveniente. Na decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki que afastou Cunha, Teori fala muito em excepcionalidade do caso. Aí está o problema: não podemos esperar que a Justiça julgue um caso como exceção, pela expectativa da opinião pública, mas as decisões jurídicas deveriam estar amparadas no regulamento em vigor.
 
Enfim, como disse o prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT/SP) em entrevista ao El País, "o problema não está na boa intenção, o problema está na mudança de entendimento com o jogo em curso".

Além da seletividade da Justiça, outro fator que vem nos impedindo de nos consolidarmos como estado democrático de direito é a indignação seletiva da população. Um estudo inédito de pesquisadores da FGV-RJ durante as eleições de 2014 no Facebook, abordada em texto da Folha de S. Paulo[2], corrobora essa percepção que os brasileiros se indignam apenas com a corrupção dos outros: “a tendência à punição ao político suspeito de corrupção só ocorreu quando os valores quanto à economia e aspectos sociais de eleitores e candidato eram divergentes". Ou seja, o eleitor só pune o candidato corrupto (não votando nele) se ele tiver valores diferentes dos seus. "Quanto maior a convergência ideológica, maior a propensão à manutenção do voto".


É isso, nossa democracia continuará manquitolando enquanto boa parte da população pensar que “roubado é mais gostoso”, que os fins justificam os meios e que não faz mal a lei punir seletivamente apenas políticos de posições contrárias à maioria.

E você? É daqueles que esperam que o vilão seja punido pela lei ou é daqueles que torcem pro vilão apanhar do mocinho na novela?


[1] A discussão sobre democracia é extensa, com textos relevantes desde Aristóteles. Pra ficar apenas com um, vale muito a leitura do clássico Poliarquia, do cientista político norte-americano Robert Dahl: disponível para vender bit.ly/1U99fcO.
[2] Esse texto da Folha é incrível. Ele aborda nove diferentes pesquisas sobre corrupção que identificam basicamente que os brasileiros declaram repudiar práticas ilegais até com mais intensidade que outros países europeus, mas que declaram estar mais em exposição direta a atos corruptos. Além disso, brasileiros dizem que a maioria das pessoas não é digna de confiança mais que outros países, e que acreditam que os outros vão tirar vantagem. Outro ponto importante levantado no texto é que a indignação a atos corruptos é maior entre pessoas de esquerda que na direita. Além disso, em casos de bonança de recursos públicos, a corrupção tende a ser mais facilmente aceita!