domingo, 16 de outubro de 2016

Coxinhas x Petralhas Parte 2 - PEC 241 e as políticas sociais

Em um texto aqui no blog, de fevereiro de 2016, tentei descrever algumas diferenças entre esquerda e direita. Falei um pouco como cada lado vê temas como a meritocracia, a desigualdade e o papel do Estado na sociedade.

Agora, vamos tentar entender melhor como podem funcionar as políticas sociais para cada um dos lados.  Para um liberal, por exemplo, que acredita na meritocracia e no Estado mínimo, qual país pode servir de referência em política social?  E qual país é referência para alguém que acredita em um Estado que deve garantir políticas sociais universais, como os socialdemocratas?

Pra isso, o clássico livro The Three Worlds of Welfare Capitalism[1],  do cientista político sueco Gøsta Esping-Andersen, publicado em 1990, pode nos ajudar. Esping-Anderson não dividiu as políticas sociais ou Welfare States em duas, mas em três: liberal, conservadora e socialdemocrata:
  • Liberal: "Em um dos grupos temos o welfare state 'liberal', em que predomina a assistência aos comprovadamente pobres (...). O Estado, por sua vez, encoraja o mercado, tanto passiva - ao garantir apenas o mínimo - quanto ativamente - ao subsidiar esquemas privados de previdência."
  • Conservador: “Nestes welfare states conservadores e fortemente ‘corporativistas’, a obsessão liberal com a mercadorização e a eficiência do mercado nunca foi marcante e, por isso, a concessão de direitos sociais não chegou a ser uma questão seriamente controvertida. O que predominava era a preservação das diferenças de status; os direitos, portanto, estavam ligados à classe e ao status."
  • Socialdemocrata: “O terceiro e evidentemente o menor grupo de países com o mesmo regime compõe-se de nações onde os princípios de universalismo e desmercadorização dos direitos sociais estenderam-se também às novas classes médias".

Esping-Andersen também enumera quais países são tipicamente liberais, quais são conservadores e quais são social-democratas. Para o autor, os países anglo-saxões, como os Estados Unidos, são liberais; os escandinavos, como Suécia e Dinamarca, são socialdemocratas; e países como Itália e França seriam conservadores. Uma tabela atualizada de sua classificação pode ser vista na última página do artigo Social Stratification and Welfare Regimes for the 21st Century: Revisiting the 'Three Worlds of Welfare Capitalism , dos cientistas políticos norte-americanos Lyle Scruggs e James Allan.

Já houve também tentativas de se classificar os Welfare States latino-americanos, inclusive o brasileiro. De todo modo, pra facilitar a compreensão, vou focar apenas em dois modelos de Welfare State: o liberal e o socialdemocrata. Afinal, ninguém, ao menos publicamente, deseja um Welfare State conservador, que favoreça o status quo e a preservação de diferenças de status. O embate intelectual tem sido apenas entre liberais x social-democratas. Cada um defendendo um tipo de política social. Cada um com um modelo a seguir!

Então, vejamos: em países liberais, vêm se optando majoritariamente para que o cidadão arque com os custos de saúde e educação, por exemplo. O Estado ficaria apenas com serviços de saúde e educação para atender os muito pobres até que essa população consiga ascender socialmente e possa, finalmente, bancar um plano de saúde privado e uma escola particular para seus filhos. Assim, os cidadãos poderiam pagar menos impostos. Haveria menos espaço para corrupção, já que o Estado provê menos serviços. E seria mais difícil que os gastos do governo se descontrolassem, o que poderia provocar inflação, aumento da dívida...

Por outro lado, em países socialdemocratas, o cidadão não banca plano de saúde privado nem paga uma escola particular para os filhos. Quem faz isso é o próprio Estado, garantindo uma educação pública e uma saúde pública de qualidade, ambos bancados pelo dinheiro arrecadado pelos impostos. Isso reduz as desigualdades e promove uma forte solidariedade social. Não à toa, são nos países socialdemocratas onde são vistas as políticas mais restritivas ao uso do automóvel (transporte individual), que fazem com que pedestres, ou as pessoas e não os carros, convivam mais intensamente no espaço público.

PEC 241
Na segunda-feira, 10 de outubro, o Congresso Nacional aprovou em primeiro turno o Projeto de Emenda Constitucional 241, que estabelece um teto para o aumento dos gastos públicos. Se sancionada (após votação em segundo turno e no Senado), nos próximos 20 anos os governos em todas as esferas (federal, estadual e municipal) só poderão reajustar suas despesas pelo índice da inflação. Nada mais.

Ou seja, o ano de 2016, ano de forte piora da economia, com retração do PIB e relatos de falta de recursos para saúde em vários lugares do Brasil[2], será a base do limite de gastos para todo o governo.

E o que isso tem a ver com políticas sociais? Acreditem, muita coisa!

Bem, a PEC 241 não menciona diretamente gastos em políticas sociais. Gastos com saúde e educação são determinados pela Constituição. Hoje, o governo federal deve gastar 13,2% da receita obtida dos impostos com saúde e 18% com educação. A PEC não altera esse cálculo, mas os recentes artigos publicados pelo Ipea e pelo Dieese demonstram que os pisos constitucionais devem se tornar o teto.

No Brasil, os gastos públicos com saúde representam algo em torno de 3,6% do PIB (R$ 190 bilhões em 2013). Se somado os gastos das famílias e dos convênios privados em saúde, chega-se a 8% do PIB, sendo 4,4% (R$ 234 bilhões em 2013) de gastos particulares. Isso é pouco? Olha, pode até parecer muito, mas está abaixo da média mundial. Além disso, o Brasil é um dos países em que os gastos privados mais têm peso. Se contarmos os gastos com saúde por habitante também estamos bem abaixo da média mundial. Só como comparação, em um país como a Dinamarca, com políticas sociais tipicamente socialdemocratas, o gasto público representa 85% do gasto em saúde. O gasto por habitante chega a mais de 4 mil dólares.  Nos Estados Unidos o gasto per capita é alto quando somamos os gastos privados (mais de 8 mil dólares), mas lá, tal como no Brasil, esses gastos privados superam os gastos públicos.

Já na educação os gastos públicos no Brasil estão em cerca de 6,6% do PIB (R$ 360 bilhões em 2013), enquanto os gastos privados 1,2% do PIB (R$ 55,8 bilhões em 2013). Mais uma vez, gasta-se muito em educação privada no país, quando comparamos com boa parte dos países desenvolvidos.
De fato, o Brasil gasta mal seus recursos, obtém um retorno menor que outros países que gastam o mesmo montante e o aumento de gastos não necessariamente gera melhorias concretas. Mas, com a PEC 241, o investimento em políticas sociais só aumenta se houver corte de gastos em outras áreas. Talvez esses cortes estejam na Previdência, vamos ver. De todo modo, o limite de gastos deve reforçar a adoção de políticas sociais tipicamente liberais, com incentivos à procura por planos de saúde privados e por educação privada, já que não será destinado um montante considerado nesses setores nos próximos anos.

Os gastos com saúde e educação, por exemplo, estão abaixo do necessário. Isso acontece porque o Brasil é um país pobre. Apesar de sermos uma das dez maiores economias do mundo, somos pobres quando olhamos o que é produzido no país por habitante. Já os países com serviços públicos de qualidade têm PIB per capita muito maior que o Brasil. Ou seja, é consenso que o país precisa crescer, precisa arrecadar mais impostos, mas, quando limitamos os gastos públicos por um período tão longo como a proposta pela PEC 241, estaremos limitando o quanto o governo irá gastar com políticas sociais. Assim, mesmo se o país crescer, a pressão por aumento de gastos sociais acabará sendo atendida com aumento de gastos do setor privado e não do setor público. No fim, estaremos cada vez mais nos distanciando de ser uma nação como Suécia e Dinamarca e nos aproximando de um modelo de país como o dos Estados Unidos, onde a maior parte das pessoas usam o setor privado quando precisam de saúde e educação.

É essa escolha que faremos?

Vejamos alguns dados sobre as consequências dessas escolhas em cada um desses modelos:
A escolha por políticas sociais liberais, tais como as defendidas pelo governo Temer e que são a regra hoje em lugares como os Estados Unidos, tem consequências graves em um país tão desigual como o Brasil! Estaremos nos afastando cada vez mais de termos uma educação pública e uma saúde pública de qualidade. Tais medidas, somadas às falas dos atuais ministros, irão sim incentivar as pessoas a buscar planos de saúde particulares e escolas particulares para os filhos[3].

É isso o que queremos?

[1] O primeiro capítulo do livro foi traduzido para o português e está disponível em: bit.ly/2e6XuEO.
[2] Alguns exemplos: Rio de Janeiro: glo.bo/2eoWoY6; Oiapoque: glo.bo/2ecJT2u; Palmas: glo.bo/2dHcOJZ; Manaus: bit.ly/2dZexZa; São Paulo: glo.bo/2diz9xb
[3] Se você quer ler mais sobre o “outro lado”, recomendo o pessoal do Mercado Popular, que, pra mim, defende o liberalismo de um jeito honesto: bit.ly/2e5Pgwb, bit.ly/2dmQjcQ e bit.ly/2e79CFN.