segunda-feira, 6 de março de 2017

Distopia na Era dos Extremos



Em fevereiro de 2016, a jornalista Eliane Brum publicou em sua coluna no El País um texto brilhante sobre a impossibilidade da ignorância e da inocência nos dias de hoje. Sob o título Todo inocente é um fdp?, ela ilustra magistralmente sua ideia com o corruptível personagem Cypher, do primeiro filme da trilogia Matrix:
Lembro uma cena do primeiro filme da trilogia Matrix, ícone do final do século 20. Os membros da resistência eram aqueles que, em algum momento, enxergaram que a vida cotidiana era só uma trama, um programa de computador, uma ilusão. A realidade era um deserto em que os rebeldes lutavam contra “as máquinas” num mundo sem beleza ou gosto. Fazia-se ali uma escolha: tomar a pílula azul ou a vermelha. Quem escolhesse a vermelha, deixaria de acreditar no mundo como nos é dado para ver e passaria a ser confrontado com a verdade da condição humana.

Na cena que aqui me interessa recordar, um traidor da resistência negocia os termos de sua rendição enquanto se delicia com um suculento filé. Ele sabe que o filé não existe de fato, que é um programa de computador que o faz ver, sentir o cheiro e o gosto da carne, mas se esbalda. Entregaria sua alma às máquinas em troca de voltar na melhor posição – rico e famoso – ao mundo das ilusões. Delataria os companheiros se a ele fosse devolvida a inocência sobre a realidade do real. Sacrifica a luta, os amigos e a ética em troca de um desejo: voltar a ser cego. Ou voltar a acreditar no filé.

A frase exata, pronunciada enquanto olha para um naco da carne espetada no garfo, é: “Eu sei que esse filé não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso”. Faz uma pausa: “Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é maravilhosa”.
A ignorância que Cypher tanto queria, pra mim, explica em parte a distopia que vivemos. Tendo em mente tanto o conceito de alienação marxista quanto o de integrados de Umberto Eco, Cypher, no filme d@s irm@s Wachowsky, é um personagem que procura justamente a alienação para poder consumir e se entreter do modo mais integrado e passivo possível. Quer ser alguém “rico e famoso”.

No entanto, ele, assim como nós, já não tem a escolha entre a pílula azul e a pílula vermelha. Cypher já havia tomado a vermelha. Foi despertado da Matrix para lutar contra as máquinas, mas se arrependeu. O que ele quer mesmo é a ignorância.

No mundo real, o desenvolvimento tecnológico e o aperfeiçoamento das instituições democráticas no mundo ocidental vêm desvendando os meandros da política. Não somos mais ignorantes destes processos, das negociatas, de como se formam os governos e dos acordos para se eleger lideranças[1]. Somos inundados de escândalos de corrupção e de maus feitos por políticos todos os dias pela imprensa e nas redes sociais. Os políticos, por sua vez, já passaram até a reconhecer esse tipo de negociata publicamente, sem pudor.

Talvez o mal-estar do nosso tempo seja o de que já não é possível escolher entre a pílula azul e a vermelha – ou entre continuar cego ou começar a enxergar o que está por trás da trama dos dias. O mal-estar se deve ao fato de que talvez já não exista a pílula azul – ou já não seja mais possível a ilusão, esta que desempenhou um papel estrutural na constituição subjetiva da nossa espécie ao longo dos milênios - trecho extraído de Todo inocente é um fdp?, da jornalista Eliane Brum.

Se antes havia a utopia socialista para fazer frente ou brecar os excessos da democracia liberal, agora não se deslumbra nada que não seja pela via democrática. Afinal, antes um consenso forjado pelas aparências que uma imposição pretensamente revolucionária.

O mundo hoje é menos pobre que há 50 anos, sem dúvida. Mas não é suficientemente menos desigual nem mais acessível. As pessoas continuam com poucas chances de chegar ao poder. Pior, são desencorajadas a fazer. São convencidas que a política não é lugar para gente boa, honesta. Melhor alienar-se.

Após um importante período de globalização e de democratização da informação, a internet também parece hoje um espaço controlado por interações vazias em ambientes devidamente pré-definidos por um grupo (ou por algoritmos) bem seleto. Quando aparecem as denúncias de corrupção ou mesmo propostas transloucadas de novos políticos já estamos anestesiados demais pelo volume incessante de informação inútil de nossa timeline. Melhor buscar no Youtube o último vídeo de standup comedy que viralizou nas redes sociais.

O fato é que não estamos mais desinformados que político x ou y é corrupto ou não. Qual foi o esquema de corrupção e quem se beneficiou dele. Se o político é midiático o suficiente pra “lacrar” nas redes, se ele ou ela fala o que pensa, sem pensar, gerando uma máquina de memes, talvez seja o suficiente para diferenciá-los dos velhos oligarcas políticos.

E quem melhor para representar-nos que nosso próprio Cypher? Alguém rico e famoso capaz de furar os bloqueios impostos pela elite política e vender uma pílula azul reeditada.

É justamente nesse contexto que vamos para o terceiro mês de governo de Donald Trump nos Estados Unidos, ainda sem impeachment nem terceira guerra mundial – Uuuuu!

Trump foi eleito em novembro de 2016 com minoria dos votos populares, mas o suficiente para ter maioria no colegiado que elege o presidente dos Estados Unidos. Seu eleitor pode ser facilmente identificado: a população branca, trabalhadora, especialmente de cidades pequenas e médias, que estavam perdendo seu poder de compra frente à globalização. Essa população via os imigrantes como ameaças a seus postos de trabalhos e os produtos estrangeiros como empecilho à hegemonia americana.

Trump foi melhor entre os eleitores homens, com baixa escolaridade, cristãos, casados, entre os mais velhos e entre ex-militares

A classe trabalhadora branca, ao assistir a seus valores morais serem ridicularizados, sua religião ser considerada primitiva e suas perspectivas econômicas dizimadas, agora descobre que até mesmo o sexo e a raça a que pertencem – na verdade, a própria forma como falam sobre a realidade – são vistos como uma espécie de problema que o país deve tentar superar. Esse é apenas um dos aspectos daquilo que Trump chamou, magistralmente, de metástase do “politicamente correto”. Ou, na verdade, algo que poderia ser mais bem descrito como uma renovada e crescente paixão progressista por igualdade racial e sexual – uma igualdade de resultados, e não a aspiração liberal à mera igualdade de oportunidades.

Grande parte da esquerda passou a ver a classe trabalhadora branca não mais como uma aliada, mas basicamente como um grupo de pessoas preconceituosas, misóginas, racistas e homofóbicas, condenando os que estão muitas vezes nos degraus mais baixos da economia a ficar também no degrau mais baixo da cultura - trecho extraído de Trump e os limites da Democracia,  do jornalista Andrew Sullivan[2].

Também não parece ser possível mostrar evidências, argumentos razoáveis nem dados científicos que façam os eleitores de Trump verem o quão surreal e ineficaz são suas propostas, seja a construção de um muro entre o México e os Estados Unidos ou a proibição da entrada de muçulmanos no país.

Os movimentos de massa, argumenta Hoffer, se distinguem por sua “disposição para o faz de conta, […] sua credulidade e prontidão para tentar o impossível”. Colocamos, então, a pergunta: o que poderia ser mais impossível do que examinar, de uma hora para outra, cada pessoa que chega aos Estados Unidos em busca de indícios de uma possível crença islâmica? O que poderia ser mais faz de conta do que um grande e belo muro, estendendo-se ao longo de toda a fronteira com o México, pago pelo governo mexicano? O que poderia ser mais ingênuo do que acreditar que poderíamos pagar nossa dívida pública por meio de uma guerra global de comércio exterior? Num partido político convencional, e num discurso político racional, tais ideias provocariam riso e seriam excluídas da disputa, pois sua evidente inviabilidade as excluem de qualquer tipo de consideração séria. No entanto, no fervor emocional de um movimento de massas democrático, essas impossibilidades se tornam símbolos da esperança, emblemas de uma nova forma de fazer política. Sua atração consiste justamente na sua inviabilidade - trecho extraído de Trump e os limites da Democracia, do jornalista Andrew Sullivan.

Mais desesperador é saber que a razão não ganha debates, mas as emoções sim[3], e  que chegamos ao ponto em que a realidade é substituída por "fatos alternativos".
E o que mais impulsiona tudo isso é justamente aquilo que os autores da Constituição americana mais temiam na cultura democrática: o sentimento, a emoção e o narcisismo, no lugar da razão, da atenção aos fatos e do espírito de serviço público. Os debates online se tornam pessoais, passionais e insolúveis praticamente no momento em que começam- trecho extraído de Trump e os limites da Democracia,  do jornalista Andrew Sullivan.

Também é verdade que os desmandos de Trump no governo não estão passando 100% ilesos. Já na primeira semana após as eleições, houve protestos por todo Estados Unidos. A Suprema Corte já barrou um dos atos mais polêmicos, a suspensão da entrada de estrangeiros de sete países de maioria muçulmana. E agora a campanha de Trump está sendo investigada por sua relação com a Rússia, o que já custou a queda de Michael Flynn, assessor de Segurança Nacional.

Em tempos de radicalizações, é preocupante perceber que há quem esteja comprando placebo (ou veneno) como se fosse pílula azul. O que se quer é sentir o gosto daquele filé conservador, da fase áurea dos anos 1950s, antes da ascensão da contracultura e do processo de conquista dos direitos civis das minorias, sem serem enquadrados de politicamente incorretos. O conhecimento pra essas pessoas não os libertou, mas os colocou em uma espécie de jaula de ferro (ou sob uma carapuça de aço[4]) que os faz ter nostalgia da ignorância.

Mas e a partir de agora? Continuaremos nos entupindo de pílulas de ilusão? Como iremos lidar com as revelações dos processos políticos? Afinal, seremos incentivados a participar (e melhorar) desses processos ou iremos nos distanciar ainda mais dos espaços de decisão?

Só acho que Keanu Reaves e nossas esperanças messiânicas já estão um pouco velhos para nos salvar de Cypher desta vez!

[1] Não à toa, a confiança da população norte-americana nos governos vem caindo drasticamente, de mais de 70% no fim dos anos 1950s para menos de 20% no governo Obama, (a pesquisa completa da Pew Research pode ser vista nas 14 páginas de Beyond Distrust: How Americans View their Government). Também não por coincidência, o número de protestos no mundo vêm aumentando a cada ano.
[2] Traduzido para o português na edição de junho da revista Piauí, o texto foi originalmente publicado em inglês na edição de maio da New York Magazine: nym.ag/1W23HEp.
[3] Também vale a leitura do artigo Why facts don't change our minds, da jornalista Elizabeth Kolber, da revista The New Yorker. Nele, a autora aborda três livros sobre a negação da razão: TheEnigma of Reason (Hugo Mercier e Dan Sperber - ambos de Harvard University), The Knowledge Illusion: Why We Never Think Alone  (Steven Sloman - Brown University - e Philip Fernbach - University of Colorado) e Denying to the Grave: Why We Ignore theFacts That Will Save Us (Jack Gorman - University of Oxford - e sua filha Sara Gorman).
[4] Max Weber utilizou o termo em alemão “stahlhartes Gehäuse” em Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Na tradução de 1930 de Talcott Parsons para o inglês, passou-se a usar Iron Cage (Jaula de Ferro) para o processo de racionalização ou secularização do mundo sob os paradigmas da ética protestante cristã. Na versão revisada pelo sociólogo brasileira Antônio Flavio Pierucci, de 2004, retomou-se uma tradução mais literal: “carapuça de aço”.