segunda-feira, 18 de julho de 2016

Com ou sem Mediação? - a participação social para Alckmin e Haddad



Já falei aqui que há uma crise da representação em boa parte do mundo. As pessoas continuam acreditando na democracia como melhor sistema de governo, mas elas se sentem desacreditadas nos tradicionais formatos de representação política, via partidos políticos e sindicatos, por exemplo. Para superar esse impasse, surgiram no mundo alguns novos movimentos sociais pedindo mais democracia, mais participação social, menos hierarquia na representação política[1]. A ideia é que hoje os cidadãos não se satisfazem mais em participar da vida política de quatro em quatro anos, nas eleições. Eles querem participar mais ativamente das decisões políticas durante os mandatos com um monitoramento mais rígido de seus representantes, participando também do desenho de determinadas políticas.

No caso de São Paulo, tanto o governador Geraldo Alckmin (PSDB) quanto o prefeito Fernando Haddad (PT) parecem não ter dado a devida atenção para essa reivindicação da população. Ambos políticos de partidos tradicionais, eles parecem ver a participação social sob o olhar do século XX.

Pra ilustrar o que estou dizendo, trago dois casos, um de cada partido, que demonstram que ainda há um longo caminho para que os cidadãos entrem na pauta governamental como atores do dia a dia:

Onde pedalo?
Haddad assumiu a prefeitura de São Paulo em 2013. Logo no primeiro mês de mandato, prometeu instalar ciclovias em todos os novos corredores de ônibus que seriam construídos na cidade. Durante a campanha eleitoral de 2012, a promessa era construir 150 km de corredores de ônibus, no entanto, o olhar sobre as ciclovias era secundário. No Programa de Governo lançado durante a campanha, foram feitas apenas citações vagas: "criar uma rede de vias cicláveis"; implementar "um sistema cicloviário composto por uma rede viária conexa e contínua para a circulação segura das bicicletas”. A menção pela construção de 400 km na cidade nos 4 anos de mandato aparece somente no documento com as "diretrizes para a bicicleta no plano de governo", compartilhado com a ONG Ciclocidade.

Em março de 2013, já eleito, Haddad anunciou oficialmente a meta de instalar os 400 km de ciclovias no Plano de Metas de seu governo.

Em um primeiro momento, no início da implantação das ciclovias, a aprovação a elas era alta. Mas, com o passar o tempo e com uma maior disseminação das ciclovias, a aprovação foi caindo.

Mas, afinal, por que 400 km? Por que não 450 ou 350? E por onde passam as ciclovias? Quem decide seus trajetos?

Se o prefeito houvesse pactuado com a sociedade esses trajetos, provavelmente a rejeição às ciclovias poderia ser menor. Mas não foi isso o que ocorreu. Hoje, são mais de 300 km de ciclovias instaladas. Porém, o estudo que desenhou os trajetos é de técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). A participação social foi muito limitada. Dois cicloativistas chegaram a entrar para o Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT) em meados de 2014, mas pouco opinaram sobre o desenho das rotas. Já a população como um todo foi excluída do processo.

Onde estudo?
No segundo semestre de 2015 o governo Alckmin decidiu fazer uma reestruturação das escolas do ensino público sob gestão do governo estadual. O plano seria implementado em 2016 e implicaria no fechamento de 94 escolas e na reestruturação de outras 754. A ideia do governo era dar preferência às escolas de ciclo único, separando crianças de 6 a 11 anos no ciclo 1, alunos 11 a 14 anos no ciclo 2 e adolescentes de 14 a 17 anos em outro ciclo no Ensino Médio.

A reorganização, segundo o governo, tornaria a gestão das escolas mais fácil. Além disso, estas escolas de ciclo único apresentavam notas 15% acima da média no Idesp (Indicador Estadual de Qualidade do Ensino).

O problema é que estudantes das escolas afetadas não gostaram nem um pouco da ideia[2]. Além de não terem sido ouvidos, eles seriam afastados de lugares com os quais já tinham vínculos. Eles também ficaram com receio de salas mais lotadas e escolas mais distantes, entre inúmeros outros boatos que surgiram.

Como resultado, os estudantes passaram a ocupar mais de 200 escolas a partir de novembro contra a reorganização. Sem opção, Alckmin suspendeu o plano e prometeu mais diálogo.
O que deu errado? Segundo o blog de simpatizantes tucanos mineiros Turma do Chapéu: "O projeto pode ser bem intencionado a princípio, mas tem um problema que o fere de morte: foi criado por técnicos, que não duvido que sejam competentes, trancados dentro de gabinetes".

Outro fator que merece atenção é o modo como os estudantes se organizaram. Baseados em uma premissa autonomista e em cartilhas do coletivo O Mal Educado, rejeitaram as entidades representativas dos estudantes, como a UNE, ou dos professores, como a Apeoesp.

A batalha pela democracia
O que os dois casos relatados acima têm em comum? Ambos foram planos desenhados por técnicos do poder público com pouca ou nenhuma participação social.

Se no governo Alckmin a participação é vista com maus olhos, no governo Haddad ela vista com o olhar da política tradicional. Ou seja, a participação só é viável através de movimentos sociais organizados.

Haddad, aliás, já declarou todo seu estranhamento com esse novo tipo de se fazer política ao falar do Movimento Passe Livre (MPL) na edição de novembro de 2015 da revista Novos Estudos:

"Deparei ali com um movimento que eu desconhecia e de tipo novo na forma. (...) Ali, havia uma tese interessante, mas uma forma de atuação política nova, que não vem de uma tradição da esquerda clássica - pelo menos brasileira. Movimentos radicais como o MST, o MTST, saúde, educação; nenhum dos movimentos radicais clássicos da esquerda brasileira até aquele momento adotava aquela forma de atuação. (...) A forma não mediada de interlocução com um governo que tinha sido eleito com a bandeira da mobilidade não me parece uma coisa progressista. (...) Insisto: a forma na política é tão importante quanto o conteúdo. Se opusermos horizontalidade e verticalidade, de novo, caímos num raciocino binário - não funciona assim. O problema é essa coisa anti-institucional, esse viés antiestatal - e essas não são questões menores."

Esse estranhamento foi muito bem abordado no artigo La Batalla por la Democracia - Los conflictos en torno a las nuevas formas de participación[3], dos cientistas políticos Ernesto Ganuza, Heloise Nez e Ernesto Morales. Os autores mostram como se dá as tensões entre movimentos sociais organizados e não organizados em experiências de orçamento participativo em Porto Alegre, Paris e Córdoba (Espanha).

No entanto, as experiências relatadas mostram também que um tipo de participação não substitui a outra. A representação eleitoral não está sendo substituída por outros modos de participação. A participação via movimentos sociais organizados também não está morrendo em lugares onde está sendo promovida a participação direta.

Outra falácia em relação às novas formas de participação estaria na incompatibilidade entre democracia direta e democracia representativa: “A questão não é acabar com a democracia representativa, mas como aproveitar uma nova maneira de a sociedade se organizar para transformar a democracia”, trecho extraído da entrevista de Pedro Abramovay, da Open Society Foundations, ao Nexo Jornal.

Pra finalizar, deixo um trecho de uma conversa fictícia criada pelo site Strong Towns e traduzido para o português pelo blog Transportação:



·  Engenheiro: Olá, eu sou o engenheiro de tráfego. Eu soube que você tem algumas dúvidas a respeito das obras rodoviárias previstas para o seu bairro.
·  Moradora: Sim. Eu soube que vocês planejam melhorar minha rua. O que isso vai significar para o meu bairro?
·  E: Nós vamos corrigir deficiências de nivelamento e também problemas no alinhamento existente. Nós também vamos aumentar os acostamentos/bermas* com o objetivo de melhorar os níveis de segurança.
·  M: Então vocês vão tornar a rua mais segura?
·  E: Sim, com certeza.
·  M: E como vocês vão tornar a rua mais segura?
·  E: Bem, primeiro vamos corrigir deficiências de nivelamento e também problemas no alinhamento existente.
·  M: O que isto significa?
·  E: Significa que o nivelamento e alinhamento atuais não cumprem os níveis de segurança e então nós vamos corrigir isso.
·  M: Qual são os níveis de segurança?
·  E: Basicamente a rua deve ser plana e reta.
·  M: Então vocês vão tornar a rua plana e reta?
·  E: Sim.
·  M: Como isso melhora os níveis de segurança?
·  E: Vai permitir que o tráfego flua melhor tornando-o mais seguro.
·  M: Eu não entendo.
·  E: Juntamente com corrigir deficiências de nivelamento e alinhamento nós também vamos alargar as vias de tráfego.
·  M: O que isso vai causar?
·  E: Vai melhorar a segurança.
·  M: Como alargar as vias de tráfego melhora a segurança?
·  E: Juntamente com corrigir deficiências de nivelamento e alinhamento, vai permitir que o tráfego flua melhor.
·  M: O que você quer dizer por permitir que o tráfego flua melhor? Como isso melhora a segurança?
·  E: Os carros vão poder passar sem se preocupar em bater em coisas e então vai ser mais seguro e por isso nós também estamos aumentando o acostamento/berma.
·  M: O que você quer dizer por aumentar o acostamento/berma?
·  E: Nós vamos remover obstáculos do acostamento/berma para melhorar os níveis de segurança.
·  M: O que é o acostamento/berma?
·  E: É a área em cada lado da rua que devemos manter livre de obstáculos caso algum carro saia da rua.
·  M: Que tipo de obstáculos?
·  E: Principalmente árvores.
·  M: Então vocês vão retirar as árvores do acostamento/berma para melhorar os níveis de segurança?
·  E: Sim exatamente.
·  M: Qual o tamanho do acostamento/berma?
·  E: O acostamento tem 7 metros em cada lado da rua.
·  M: 7 metros…isto é todo o meu jardim!
·  E: Me desculpe, mas para atender os níveis de segurança todos os obstáculos devem ser removidos do acostamento/berma.
·  M: Você entende que meus filhos brincam no acostamento/berma?
·  E: Eu não recomendaria isso, não seria seguro!
·  M: Mas é seguro hoje. Eu pensei que este projeto serviria para melhorar os níveis de segurança. Como uma rua se torna mais segura se meus filhos não podem brincar nela?
·  E: Melhorando a rua para torná-la mais segura assim permitindo que o tráfego flua melhor.
·  M: Flua melhor… Os carros só vão ir mais rápido, não é verdade?
·  E: Nós vamos colocar um limite de velocidade depois de fazer um estudo de velocidade e determinaremos a velocidade segura para a rua.
·  M: Mas os carros vão devagar hoje, “devagar” é o mais seguro aqui para o meu bairro, onde as crianças brincam no jardim. Como ter uma “pista de corrida” em frente à minha porta melhora os níveis de segurança?
·  E: Vai melhorar os níveis de segurança pois o tráfego fluirá melhor.
·  M: Eu não estou ciente de nenhuma morte ou acidente nesta rua e eu vivo aqui há 30 anos. Você tem conhecimento de alguma morte?
·  E: Não, não tenho.
·  M: Eu nem sequer tenho conhecimento de nenhuma ocorrência de acidentes nesta rua. Você tem conhecimento de algum acidente?
·  E: Não, não tenho.
·  M: Então porque você diz que a rua não é segura hoje em dia?
·  E: A rua não é segura porque não atende aos níveis de segurança.
·  M: Então hoje os carros vão devagar e é seguro mas você quer nivelar a rua, endireitar a rua, alargar a rua e remover todas as árvores, para os carros poderem ir mais rápido e depois colocar um limite de velocidade para então eles irem mais devagar. E você diz que isso é mais seguro?
·  E: Sim. Vai atender os níveis de segurança e por favor entenda que há projeções de elevado crescimento de tráfego para a sua rua.
·  M: O que você quer dizer: projeções de elevado crescimento de tráfego?
·  E: Nós projetamos que muitos carros irão passar por esta rua nos próximos anos.
·  M: Por que muitos carros irão passar por esta rua? Ela é pequena e estreita e de baixa velocidade.
·  E: Por causa disso que devemos melhorá-la, para se enquadrar nos padrões de segurança.
·  M: Isso não vai simplesmente encorajar mais pessoas a usá-la?
·  E: Nós já prevemos isso e vamos adicionar 2 vias de tráfego para comportar os futuros carros.
·  M: Você vão acrescentar mais 2 vias?
·  E: Sim.
·  M: Para carros?
·  E: Sim. 2 vias a mais vão permitir que a rua se enquadre nos níveis de segurança.
·  M: Deixe-me ver se entendi: você projeta um elevado crescimento no tráfego sendo que não há quase nenhum hoje e vai aumentar a rua para comportar este tráfego. Assim você não está simplesmente encorajando mais pessoas a dirigir?
·  E: Não. Nós estamos antecipando o crescimento e precisamos fazer esses melhoramentos para dar conta do crescimento.
·  M: E onde esse crescimento vai ocorrer?
·  E: O novo crescimento ocorrerá na zona livre de impostos.
·  M: E onde é essa zona livre de impostos?
·  : A zona livre de impostos é na periferia da cidade.
·  M: Que tipo de crescimento vai ocorrer na zona livre de impostos na periferia da cidade?
·  E: Há propostas para uma mercearia, um restaurante drive-thru e um posto de combustível.
·  M: OK, Mas eu vou à mercearia aqui do bairro no outro lado da rua e eu como no restaurante subindo o quarteirão e eu não dirijo muito, logo não preciso de outro posto de combustível.
·  E: Sim nós sabemos, por isso nós planejamos uma passagem pedonal aérea para este quarteirão.
·  M: O que é uma passagem pedonal aérea?
·  E: É uma ponte que lhe vai permitir atravessar a rua com segurança.
·  M: Mas eu posso atravessar a rua em segurança agora! Meus filhos podem atravessar a rua com segurança agora! Porque eu irei precisar de uma passagem pedonal aérea?
·  E: Com 4 vias de tráfego você não vai conseguir atravessar a rua sem atrasar o tráfego. E atrasar o tráfego não seria seguro.
·  M: Mas eu não vou conseguir empurrar o meu carrinho de bebê na passagem pedonal aérea toda vez que eu queira atravessar a rua para comprar leite! Como isso me beneficia?
·  E: Você se beneficiará com a arrecadação extra de imposto proveniente do novo crescimento.
·  M: Mas o novo crescimento não é numa zona livre de impostos? Com quanto eles vão contribuir de impostos?
·  E: Nada atualmente, mas em 10 a 15 anos eles vão contribuir muito com impostos.
·  M: Por que nós vamos fazer um investimento que não vai começar a se pagar em 10 a 15 anos? Até lá a mercearia vai virar numa Loja de 1,99/Loja 300 e haverá uma outra zona livre de impostos.
·  E: Se nós não provermos os subsídios e não investirmos no melhoramento das ruas o crescimento não iria acontecer. Sem crescimento a cidade pode morrer.
·  M: Mas se eu não posso atravessar a rua a pé até a mercearia ela irá fechar. Se eu não posso caminhar até ao restaurante ele irá fechar. Ninguém vai querer comprar minha casa com uma autoestrada à porta. Você se importa que o meu bairro está morrendo?
·  E: Sim, é por isso que nós estamos investindo em novo crescimento, é por isso que estamos melhorando a rua.
·  M: Mas afinal quanto vai custar esta obra?
·  E: O custo total do projeto é de 9 milhões de dólares.
·  M: 9 milhões de dólares…nossa cidades está falida, nós não temos dinheiro para manter a iluminação pública à noite, nós despedimos 4 bombeiros e metade da força policial. De onde vamos tirar 9 milhões de dólares?
·  E: 7 milhões de dólares são do governo estadual e federal. Os outros 2 milhões de dólares serão coletados das propriedades beneficiadas pelo projeto.
·  M: O que isso significa: coletados das propriedades beneficiadas pelo projeto?
·  E: Significa que as propriedades que se beneficiam irão pagar uma parcela dos custos do projeto.
·  M: Quem se beneficia do projeto?
·  E: Todo mundo que está nesta rua.
·  M: Calma. Você está dizendo que eu beneficio do projeto e irei pagar uma parte?
·  E: Sim. Você é um dos proprietários beneficiados que terão de contribuir com o projeto.
·  M: Você deve estar de brincadeira! Eu tenho uma rua calma e sossegada hoje em dia. Meus filhos podem brincar no jardim e é seguro. Eu posso caminhar até a mercearia do outro lado da rua e ao restaurante e é seguro! Para tornar mais seguro vocês vão nivelar, alargar e endireitar minha rua e acrescentar mais duas vias de tráfego. Isso é feito por causa das projeções de tráfego porque queremos novo crescimento na zona livre de impostos na periferia da cidade. E enquanto meu bairro degrada-se e a minha casa perde valor você ainda me obriga a pagar uma parte!
·  E: Me desculpe, mas as projeções necessitam de 4 vias de tráfego e nós devemos cumprir os níveis de segurança.
·  M: E você se pergunta porque nosso país está falido! Nós precisamos parar com estes absurdos e começarmos a construir cidades fortes!



[1] Sobre o tema, vale a leitura do artigo (em catalão) La seleció dels líders de partit en les democràcies occidentals, dos cientistas políticos Òscar Barberà e Astrid Barrio, disponível em: bit.ly/29DH9tr.
Basicamente, os autores tentaram mostrar como alguns partidos europeus vêm tentando romper essa crise de imagem através do aumento da participação política dos cidadãos em seus processos internos. Ou seja, ao invés de um grupo de políticos muito restrito eleger o representante do partido nas eleições, por que não abrir primárias para toda a população definir quem será o candidato do partido?
[2] Todo o processo de mobilização dos estudantes é narrada no artigo As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social, de Antonia Malta Campos, Jonas Medeiros, Márcio Moretto Ribeiro. Disponível em: bit.ly/29FqKPe.
[3] O mesmo artigo pode ser lido também em inglês em: bit.ly/2a9QZiL.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Eleições espanholas: onde está a nova política?

Crise da representação, velha política x nova política, novos partidos políticos, afinal, o que há por trás das novas lideranças políticas? Elas são realmente novas? Ou são apenas mais do mesmo?

É difícil encontrar as respostas pra todas essas perguntas, mas acho que vale a pena olhar um pouco para as eleições na Espanha de 2015 e 2016 pra tentar entender melhor o que é esse fenômeno. Ainda sem desfecho, elas estão deixando a política espanhola em um impasse inédito por conta da falta de acordos por coalizões e pelo embate entre os velhos e os novos atores políticos.

Parlamentarismo e eleição proporcional de lista fechada
Antes de falar das eleições em si, é preciso dar algumas explicações sobre o sistema eleitoral espanhol. Lá, diferente do Brasil, funciona o parlamentarismo. Ou seja, o eleitorado vota para o Congreso de los Diputados (similar à Câmara dos Deputados) e são os eleitos para deputados que votam no presidente de governo.

Outra diferença é que lá o sistema eleitoral para escolha dos deputados é o proporcional de lista fechada. Se no Brasil o eleitor vota no candidato (proporcional de lista aberta), na Espanha o eleitor vota no partido. Como o sistema é proporcional, a divisão dos cargos por partido é proporcional aos votos do partido naquela Comunidad Autónoma (similar aos Estados). Se um partido no Brasil consegue 10 cadeiras em um estado, os eleitos são os 10 mais votados do partido. Na Espanha, a ordem da lista é pré-definida pelo partido. Assim, não se sabe de antemão quantos do partido serão eleitos, mas já se sabe antes da eleição quem seriam os escolhidos do partido.

Com esse sistema, de 1982 pra cá, após o fim da ditadura franquista, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español) e o PP (Partido Progresista) dominaram completamente o sistema. O PSOE, uma espécie de PT espanhol, governou 13 anos até 1996. O PP, algo mais próximo ao PSDB, governou 8 anos de 1996 até 2004, quando o PSOE voltou ao poder. Desde 2011, é o PP mais uma vez quem está no poder. O que difere bastante do caso brasileiro é que o partido do presidente eleito na Espanha sempre conseguiu maioria do parlamento e não precisou até hoje fazer coalizão para governar.

Agora o cenário está mudando!

Já na eleição de 2015 apareceram dois novos atores relevantes: os partidos Podemos e Ciudadanos (C’s). Na ocasião, o PP foi o partido mais votado (123 deputados - 35% das cadeiras do Congreso de los Diputados). O PSOE foi o segundo mais votado (90 deputados - 25%). Em seguida, vieram o Podemos (69 deputados – 21%) e o Ciudadanos (40 deputados – 11,4%), que mudaram completamente o cenário bipartidarista, provocando impasses que não ocorriam até então.

Nos dois meses seguintes à eleição, houve várias tentativas de negociação para formar uma coalização de governo. Quase todos os quatro partidos se reuniram entre si. Porém, houve acordo apenas entre dois deles: PSOE e Ciudadanos. A coalização destes dois partidos lançou em março a investidura entre os deputados eleitos, porém não conseguiram maioria. Tiveram apenas 131 votos dos 176 necessários para governar. Como resultado, nova eleição foi convocada para junho de 2016.

Para as eleições de junho, o Podemos veio diferente. Em coalização com a Izquierda Unida (IU), o partido apontava na segunda posição, passando o PSOE, segundo pesquisas de opinião. No entanto, não foi isso o que aconteceu. A coalização Unidos Podemos conseguiu eleger os mesmos 71 deputados eleitos (21%) por Podemos e IU separadamente em dezembro de 2015. O Ciudadanos também não foi bem. De 40 foi para 32 deputados (13%). O PSOE foi de 90 para 85 (23%) deputados. Já o PP se saiu como grande vencedor da segunda eleição, com 137 deputados (33%), 6 a mais que em 2015. Já os outros partidos, que tinha 8% das cadeiras, foram para 10%, fragmentando um pouco mais o Congreso de los Diputados.

Cidadania e poder
Já falei aqui  que as democracias do mundo ocidental vivem uma crise da representação[1] - as pessoas continuam acreditando na democracia como melhor sistema de governo, mas elas se sentem desacreditadas no atual formato de representação política, via partidos políticos e sindicatos, dando preferência à entrada de novos atores ao sistema.

Na Espanha, esse processo de entrada de novos atores ganhou impulso primeiramente com a crise econômica de 2008. A taxa de desemprego, que estava abaixo de 9% em 2007, pulou para mais de 13% em 2008, chegando a absurdos a 25% em 2012. A mesma crise levou a uma das maiores manifestações públicas do país, iniciada em 15 de maio de 2011 (Movimiento 15-M). Os indignados tomaram mais de 50 cidades da Espanha pedindo Democracia Real Ya! Os protestos diários terminaram antes do fim de junho de 2011, mas a antipatia aos dois maiores partidos (PP e PSOE) só aumentou.

Houve eleição para deputados já em 2011, mas Podemos e Ciudadanos ainda não tinham estrutura para lançar candidato a nível nacional. No pleito de 2011, o PP se aproveitou do fiasco do PSOE à frente do país durante o pior momento da crise e levou o comando do governo, porém a taxa abstenção (o voto lá não é obrigatório) foi uma das maiores desde a redemocratização, chegando a 31%.

Foi só nas eleições municipais de 2015 que ficou claro como PP e PSOE estavam perdendo força. C’s foi o terceiro mais votado no país, mas não conseguiu eleger prefeito em nenhuma cidade grande. Já o Podemos conseguiu duas façanhas importantes: elegeu em Madri Manuela Carmena, com o apoio do PSOE, e Ada Colau em Barcelona, com apoio do PSOE e dois partidos de esquerda catalães: ERC e CUP. A votação das duas novas prefeitas das maiores cidades espanholas foi emblemática. Carmena era juíza com histórico de defesa dos direitos dos trabalhadores, e Colau uma líder dos movimentos sociais contras as desapropriações.

A nível nacional, os líderes de Podemos (Pablo Iglesias) e Ciudadanos (Albert Rivera) foram ganhando espaço durante o ano de 2015. Iglesias fez um histórico discurso no centro de Madrid em janeiro de 2015, dando impulso à sua candidatura. Já Rivera demorou mais pra aparecer, mas chegou a incomodar especialmente em outubro e novembro, pouco mais de um mês antes da eleição, aparecendo empatado nas pesquisas com PSOE e PP.

No primeiro debate da campanha, promovido pela jornal El País, do Grupo PRISA, Rajoy não foi.  Já no debate promovido pela RTVE, antes da eleição de dezembro de 2015, Rivera e Iglesias não participaram. Como de costume, a RTVE, rede pública de rádio e televisão, realizou seu debate "cara a cara" apenas entre Sanchez (PSOE) e Rajoy (PP). O debate com quatro candidatos foi realizado apenas pelo canal La Sexta, do grupo Atresmedia. Porém, o PP mandou Soraya Sáenz de Santamaría, a vice de Rajoy, com o intuito de diminuir sua exposição ao lado de Podemos e Ciudadanos.

Pra mim, essa guerra de PP e PSOE tentando barrar o avanço de outros partidos é que vem marcando a corrida eleitoral em 2016.

Bipartidarismo x pluripartidarismo
Qual foi a tática de cada um dos quatro principais atores nas eleições espanholas de 2016?
O PP teve uma posição clara: somos os mais votados e por isso merecemos a presidência do governo. Antes da eleição de 2015, o PP tentou de tudo para minimizar o impacto dos avanços das candidaturas de Podemos e Ciudadanos. Nas declarações públicas, evitou ao máximo falar sobre eles. E nunca esteve disposto a negociar de fato uma divisão do poder. Nas eleições de 2016, manteve a estratégia. Desta vez, Rajoy foi ao debate promovido pela RTVE com os outros três candidatos, mas se negou até a atacar Podemos e Ciudadanos. A estratégia foi ignorar.

O PSOE já teve postura diferente, pois foram seriamente ameaçados de perder o posto de principal partido de esquerda para o Podemos. Nas eleições municipais, acabaram se sujeitando a ser coadjuvantes nos mandatos das prefeitas de Madri e Barcelona, ambas do Podemos, e precisavam brecar o avanço do partido de Iglesias. O PSOE usou ainda a questão independentista para se aliar ao Ciudadanos ao invés do Podemos. Me explico: PSOE, PP e Ciudadanos são espanholistas, ou seja, contra qualquer independência da Catalunha, País Basco, Galícia ou Ilhas Canárias. Já o Podemos é a favor da autodeterminação: são contra a independência, mas estão dispostos a realizar um plebiscito na Catalunha sobre a questão. Como o plebiscito na Catalunha era uma posição irrefutável do Podemos, não houve acordo com o PSOE. O Podemos também não queria um governo junto ao C’s.
Nos debates, o PSOE ainda fez questão de marcar posição atacando o Podemos algumas vezes e preservando o Ciudadanos. A ideia era deixar claro que não haveria coligação alguma com Podemos, ainda mais com Iglesias como líder.

Já o Podemos vinha se sentindo fortalecido desde as eleições municipais. Depois das eleições de 2015, não abriram mão de praticamente nada para tentar uma coalização com o PSOE. Marcou posição contra o C’s, refutando qualquer aliança com Rivera. Com os resultados das pesquisas indicando avanço da coalização Unidos Podemos, o partido se sentiu ainda mais seguro para incitar uma coalização única e exclusiva com o PSOE, se possível, com o Iglesias como presidente de governo.

O Ciudadanos de Rivera foi talvez o partido mais perdido em toda corrida eleitoral. Não soube ganhar os votos do PP. Não marcou posição e se dispôs a fazer acordo com qualquer um dos adversários. Atacou em especial o Podemos, muitas vezes mais que o PP de Rajoy.

Se antes o eleitor estava cansado e desmotivado com a disputa PP x PSOE, a corrida eleitoral de 2015 e 2016 mostrou que há espaço para algum entusiasmo em relação às novas candidaturas, mas elas precisam de virtú além fortuna. Afinal, por que alguém que está insatisfeito com o PP irá deixar sua casa e votar no C’s sabendo que o partido irá ceder em todos os pontos para que o PSOE governe? E por que o histórico eleitor do PSOE, insatisfeito com os socialistas, irá deixar sua casa para votar no Podemos?

Hoje, o mais provável é que o PP governe. As pesquisas pós-eleição mostram que até os eleitores do PSOE querem que seu partido se abstenha para que seja eleito o presidente do governo do PP, evitando assim novas eleições. Para esse tipo de acordo, C's e PSOE que o PP abram mão de Rajoy e escolham outra pessoa como chefe de governo.

Qual a novidade?
Há, de fato, algum fator novo nas candidaturas de Iglesias (Podemos) e Rivera (Ciudadanos) ou são apenas novos atores disputando o poder?

No lado do Ciudadanos, que se autointitula de centro, Rivera tem roubado votos especialmente do PP. Por quê? Porque as propostas do Ciudadanos não são nada anticapitalistas. Eles se espelham nos partidos liberais escandinavos como sueco Liberalerna e o dinamarquês Venstre para propor uma Espanha com um estado de bem estar social sim, mas também com uma abertura econômica propícia ao empreendedorismo e aos negócios. E qual a diferença para a “velha direita”? Basicamente, o Ciudadanos não é conservador em relação aos costumes. Rivera já deu declarações que está disposto a enfrentar o debate pela legalização da prostituição, do consumo de drogas, do aborto, entre outros temas polêmicos.

E qual a diferença do Podemos para o PSOE? A resposta é um pouco mais complicada. Enquanto PSOE sempre contou com as duas principais sindicais como base social (Comisiones Obreras – CCOO; Unión General de Trabajadores – GT), Podemos não tem exatamente a mesma origem. Os movimentos sociais que criaram o partido são menos institucionalizados. A própria prefeita de Barcelona, Ada Colau, era uma liderança da Plataforma de Afectados por la Hipoteca, uma organização com demandas muito mais recentes e mais específicas. Iglesias, que vem de família ativista, participou da Juventud Comunista, filiada ao Partido Comunista de España, mas fez carreira mesmo como professor universitário e como apresentador de pequenos programas de debate político na TV, antes de fundar o Podemos. Outros aspectos secundários, mais simbólicos que práticos, marcam algumas diferenças entre os dois partidos. Entre as medidas de perfumaria, vemos que muitos deputados do Podemos não utilizam terno e gravata. É mais comum vê-los de camisa e jeans pelo Congresso.

Há ainda a proposta de se proibir que os que ocupam altos cargos no Poder Executivo sejam proibidos de participar do conselho de administração de empresas estratégicas com participação estatal. No entanto, talvez a principal novidade do Podemos seja o modo como o partido pensa a participação social. Nas prefeituras de Madri e Barcelona os governos criaram portais de participação (Decide Madrid e Decidim Barcelona) em que os cidadãos podem fazer propostas e, se obtiverem o respaldo suficiente, ela pode começar a ser debatida e seguir adiante como política pública. Os portais ainda permitem que os cidadãos avaliem as propostas da própria prefeitura e de movimentos sociais organizados e promovem encontros presenciais de debate de políticas. A ideia é tentar aproximar o cidadão comum da administração municipal, muitas vezes colocando a participação individual em pé de igualdade de movimentos organizados.

Todos esses fatores fazem com que a base de eleitores desses novos partidos também seja diferente. Quem vota no Podemos ou no Ciudadanos geralmente é mais jovem e com mais tempo de estudos!


Nova Sustentabilidade Cidadanista
No Brasil, ainda não temos versões tupiniquins de Podemos e Ciudadanos. Existem alguns novos partidos, como o Partido Novo, Rede Sustentabilidade e Raiz Cidadanista, que prometem crescer em um futuro próximo. No entanto, a implosão do bipartidarismo PT x PSDB ou do peemedebismo[2], que vem dominando as eleições desde 1994, me parece cada vez mais próxima.

É difícil comparar situações de países diferentes em momentos diferentes. Os indignados do 15-M guardam poucas semelhanças com aqueles que foram às ruas no Brasil em junho de 2013. Os cidadãos espanhóis também se autointitulam mais à esquerda e os brasileiros mais à direita. A crise econômica pela qual a Espanha atravessa desde 2008, por sua vez, é completamente distinta dos problemas que o Brasil vem enfrentando atualmente. Aqui, a Lava-Jato é outro fator 100% local que pode mudar a correlação de forças no cenário político.
De todo modo, a ascensão de Podemos e Ciudadanos mostra como a sociedade pode reorganizar suas preferências, alterando o poder de influência de partidos e lideranças.

A nova política, tanto na Espanha quanto no Brasil, também não é assim tão nova, tão diferente. Ainda há lideranças, ainda há representação, ainda há partidos. O que Podemos e Ciudadanos vêm mostrando desde o ano passado é que é possível a entrada de novos atores e também de novos protagonistas na política. Novas práticas, ainda que secundárias muitas vezes, estão se mostrando relevantes o suficiente para convencer os mais jovens a mudar a correlação de forças políticas. Mas não se iludam: pactos e acordos entre partidos ainda serão necessários. Os que detinham o poder também não estão parados. Eles possuem uma estrutura forte o suficiente para frear grandes mudanças ou pelo menos atrasá-las.

Albert Rivera x Pablo Iglesias (jogo de ida)


Pablo Iglesias x Albert Rivera (jogo de volta)

[1] Sobre o tema, mais uma vez recomendo a leitura dos textos do cientista político Russel Dalton (bit.ly/1o9RoHI), em especial o artigo Political Support in Advanced Industrial Democracies, disponível em: bit.ly/1KKhElY.
[2] O filósofo Marcos Nobre chamou a cultura política brasileira herdada dos anos 80 como “pemedebismo” no artigo O Fim da Polarização, disponível em: bit.ly/29VugGS.