Não é só porque há uma narrativa na imprensa brasileira preponderante a favor do impeachment nem porque a Justiça vem sendo seletiva, ajudando a colar a imagem de corrupção no PT, que a queda
da presidenta Dilma se dá apenas por fatores externos ao governo. Os dois
mandatos de Dilma foram um desastre no campo econômico e também no campo político. Sobre o aspecto político, vou tentar
mostrar como chegamos a essa falta de apoio parlamentar do governo e, pra isso,
temos que voltar um pouquinho no tempo.
Comecemos analisando as chapas lançadas pelo PT nas eleições
presidenciais desde a redemocratização: em 1989, Lula foi candidato pelo PT em
uma coligação com PCdoB e PSB. Em 1994, a coligação petista foi composta por
PPS/PSB/PCdoB/PV/PSTU/PCB. Já em 1998, os partidos da coligação eram
PT/PDT/PSB/PCdoB/PCB.
Vejam bem, nas três eleições presidenciais, 89, 94 e 98, o
PT só se coligou com partidos de esquerda ou centro-esquerda, e perdeu todas!
Em 2002, a situação mudou. O Partido Liberal (PL, atual
Partido Republicano - PR) começou a fazer parte da coligação que disputou a eleição
com Lula, tendo o empresário José Alencar como vice. Claro, não foi só por
isso, mas a mudança ajudou Lula a vencer pela primeira vez a eleição
presidencial após três derrotas seguidas.
Em 2005, veio o Mensalão, e o PT ampliou sua base, adotando como
estratégia a coligação com outros partidos de ideias e posições bem diferentes
das suas, tendo o PMDB como seu principal aliado. Vejam os partidos que fizeram
parte da coligação eleitoral das
campanhas petistas de 2002 a 2014:
2002: PT/PL/PMN/PCB/PC do B
2006: PT/PMDB/PRB/PCdoB
2010: PT/PMDB/PDT/PCdoB/PSB/PR/PRB/PSC/PTC/PTN
2014: PT/PMDB/PSD/PP/PR/PDT/PRB/PROS/PCdoB
Ou seja, se em 2002 o PT tinha como aliados para a campanha eleitoral preferencialmente partidos de centro-esquerda, a partir de 2006, depois do mensalão, o PMDB acabou sendo o principal aliado durante as eleições e trouxe junto outros partidos considerados de direita como PP, PSD e PRB.
2002: PT/PL/PMN/PCB/PC do B
2006: PT/PMDB/PRB/PCdoB
2010: PT/PMDB/PDT/PCdoB/PSB/PR/PRB/PSC/PTC/PTN
2014: PT/PMDB/PSD/PP/PR/PDT/PRB/PROS/PCdoB
Ou seja, se em 2002 o PT tinha como aliados para a campanha eleitoral preferencialmente partidos de centro-esquerda, a partir de 2006, depois do mensalão, o PMDB acabou sendo o principal aliado durante as eleições e trouxe junto outros partidos considerados de direita como PP, PSD e PRB.
A aproximação do PT aos partidos com posições muito
diferentes das suas tem uma razão. A primeira é que o partido assumiu que não
haveria outra forma de ganhar uma eleição[1].
A outra é que somente com esses partidos é que o PT conseguiria terminar um
mandato e ter apoio no Congresso para formar maioria. Formar maioria é um
processo que não necessariamente precisa ocorrer antes das eleições. Pelo
contrário, é mais comum que seja feito depois. Mas o PT preferiu tentar compor
essa maioria já durante as eleições.
O partido ainda assumiu que teria que jogar as regras do
jogo. Depois de três derrotas seguidas, tinha que fazer o que os outros partidos
faziam pra vencer, mesmo se isso implicasse em algo ilegal. Surgiram aí
denúncias e admissões de culpa de caixa 2 e, depois de assumir o governo, de desvio de dinheiro de estatais para financiar as campanhas.
Mas voltemos às alianças partidárias. O apoio de partidos de direita aos governos petistas não foi de graça. Além de cargos em estatais e ministérios endinheirados, esses partidos têm posições sobre determinados assuntos que precisavam ser pactuados. Nesse sentido, o governo também cedeu! Bandeiras históricas do PT em defesa dos indígenas, dos homossexuais, dos sem-terra, entre outras, foram renegadas pelo governo Dilma com a suspensão do programa Brasil Sem Homofobia (conhecido popularmente como kit-gay), com a lei antiterrorismo, que limita o direito a manifestação popular, sem contar o menor número de terras indígenas demarcadas da história e a criticada construção da usina de Belo Monte.
E aí que as alianças feitas para as campanhas eleitorais e
para formar maioria no Congresso acabaram virando contra o próprio PT. Como
podemos ver com a evolução das bancadas de deputados federais, a ascensão do PT à presidência não serviu
para aumentar a representação de partidos de esquerda ou centro-esquerda no
Congresso. Em 2014, tivemos até um número menor de deputados federais eleitos
desse campo ideológico do que 2002.
Pra elucidar ainda mais o cenário, comparemos os partidos
políticos com torcidas organizadas. Sério! Façamos esse esforço! Pensem que o
PT é, sei lá, a Gaviões da Fiel. E que essa torcida disputa a hegemonia ou a administração
dos estádios de futebol do estado de São Paulo. A Gaviões se candidata sempre
com seus pares Camisa 12 e Pavilhão 9, mas a rejeição ao corintianismo nunca
permite sua eleição. Aí surge a ideia de se coligar com torcidas rivais, de
outros times, para compartilhar o poder. A ideia dá certo e a Gaviões é eleita
como cabeça da chapa. Mas durante seus mandatos, ano após ano, a torcida organizada vai abandonando antigos aliados e
permite a aprovação de medidas que prejudicam seu time. As torcidas dos rivais
crescem até o momento que não precisam mais da Gaviões e lhe dão o pé na bunda.
É mais ou menos isso que acontece com o PT no campo político com o impeachment.
A verdade é que o PMDB e os outros
partidos de direita só aderiram aos governos petistas porque o lulismo[2]
beneficiou os mais diferentes setores da sociedade, desde os ex-miseráveis
introduzindo-os ao acesso ao consumo, até os grandes empresários,
latifundiários e demais elites econômicas.
Quem mais foi contra o lulismo, segundo o presidentedo instituto de pesquisa Data Popular, Renato Meireles, foi a Classe B ou classe média tradicional, aquela que detinha privilégios de classe média, mas que não conseguiu se diferenciar da classe média emergente ou nova classe média ou nova Classe C, como queiram, após sua ascensão. Por mais que esse pessoal tenha conquistado mais poder aquisitivo, esse poder não significou mais status social.
Enfim, o PMDB e a direita que apoiou Lula e Dilma nas 3 últimas eleições nunca gostaram de apoiar o PT. Os governos petistas, por sua vez, não traduziram sua aprovação popular em aumento da esquerda no parlamento, gerando um impasse.
Quem mais foi contra o lulismo, segundo o presidentedo instituto de pesquisa Data Popular, Renato Meireles, foi a Classe B ou classe média tradicional, aquela que detinha privilégios de classe média, mas que não conseguiu se diferenciar da classe média emergente ou nova classe média ou nova Classe C, como queiram, após sua ascensão. Por mais que esse pessoal tenha conquistado mais poder aquisitivo, esse poder não significou mais status social.
Enfim, o PMDB e a direita que apoiou Lula e Dilma nas 3 últimas eleições nunca gostaram de apoiar o PT. Os governos petistas, por sua vez, não traduziram sua aprovação popular em aumento da esquerda no parlamento, gerando um impasse.
Aí, finalmente chegamos a
fevereiro de 2015: essa direita que apoiou por tanto tempo um governo com a
intenção de ser esquerda viu finalmente a oportunidade de romper a aliança.
Esse rompimento se deu já na eleição para presidente da Câmara dos Deputados,
mesmo após a vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2014. O deputado federal
Eduardo Cunha (PMDB-RJ) foi eleito à revelia de Dilma, derrotando o candidato governista Arlindo
Chinaglia (PT-SP) com votos de vários partidos da base de coalizão, entre eles
PP e PRB, que participaram da chapa petista nas eleições de 2014 e tinham
ministérios sob o governo Dilma.
Antecipando uma possível oposição
do PMDB, Dilma tentou dar uma mexida em sua base de sustentação ainda no fim de
2014. O PT apostou em PSD e PROS como partidos que pudessem funcionar como
equivalente funcional do PMDB. No entanto, Dilma nomeou políticos que não
falavam em nome de seus respectivos partidos, anunciando um ministério com 6
pastas para o PMDB, 2 para o PSD e 1 para cada um dos outros 7 partidos da base
aliada (PROS, PP, PR, PTB,PRB, PDT e PCdoB).
O que aconteceu de diferente? Pela
primeira vez um partido da base que não fosse o PMDB possuía 2 ministérios e
pela primeira vez o PT cedeu o Ministério da Educação[3] a outro partido da base. A esperança petista era que deputados mudassem de partido, inflando PSD e Pros e esvaziando o PMDB. Com a eleição de Cunha à presidência da Câmara dos Deputados, o tiro saiu pela culatra, dando início a um processo de debandada e a um governo de minoria. Ou seja, sem poder de agenda no Legislativo, o Executivo, personificado na figura da presidenta Dilma, ficou fragilizado. Cunha, que sempre declarou fazer oposição ao governo, passou a atrapalhar o Executivo juntamente com os parlamentares que o elegeram, inclusive os da base governista. Então, a partir de 2015, a taxa de apoio dos parlamentares aos projetos do governo votados no Congresso caiu ainda mais em uma tendência que era observada desde 2013 e um movimento pró-impeachment ganhou força [4].
Em resumo, faltou lealdade do PT às suas bandeiras e aliados históricos e, mais que isso, faltou procedimento[5] para manter sua base fiel ao governo. É interessante ver como o apoio dos partidos que deram sustentação ao governo petista nos últimos 13 anos modificaram o próprio PT, freando avanços libertários no plano cultural para, em seguida, lhe desferir o contragolpe.
O impeachment é fruto de um momento ruim na economia, que fez o governo perder apoio popular; é fruto de uma narrativa da imprensa pró-impeachment; de uma Justiça seletiva; e, além de tudo, da incapacidade pessoal de Dilma de manter o poder de agenda que garantia estabilidade ao sistema.
[1] Sobre
as mudanças internas do PT desde a ascensão da tendência interna “Campo
Majoritário” até a chegada do poder em 2002, leiam o artigo do cientista político Pedro José Floriano Ribeiro O PT sob uma perspectiva sartoriana: de partido anti-sistema a legitimador do sistema, disponível em: bit.ly/1rUm9T8
[2] Sobre
o conceito de lulismo, ver os textos do cientista político André Singer, em
especial o artigo Raízes Sociais e
ideológicas do Lulismo, disponível em: bit.ly/1Rqcjk1
[3] Os
Ministérios da Educação, Saúde, Fazenda, Planejamento e Casa Civil, desde o
primeiro governo FHC sempre estiveram sob o partido do presidente. O filósofo
Marcos Nobre tratou sobre isso no artigo O
Fim da Polarização, que fala sobre as características da cultura política
que ele chamou de “pemedebismo”, disponível em: bit.ly/1ST8iYD
[4] O
cientista político Fernando Limongi aponta em seu artigo O Passaporte de Cunha e o Impeachment que o início do inferno petista
protagonizado por Cunha se deu com o lançamento da candidatura do senador
Lindbergh Farias (PT-RJ) ao governo do Estado do Rio de Janeiro. No entanto, a
delação do senador Delcídio do Amaral (PT-MS) aponta que a oposição de Cunha
teria começado com a retirada de indicados de Cunha em Furnas por Dilma, em
2011.
[5] Sobre
o “proceder”, vale a leitura do capítulo Genealogias:
o "proceder" e a divisão espacial "convívio-seguro" do
artigo Crime, proceder, convívio-seguro -
Um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões, do
antropólogo Adalton Marques, disponível em: bit.ly/1QDdLuX
Ótima série de textos sobre o impeachment. Que venham mais!
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