Em 2014, o Flamengo foi campeão carioca ao derrotar na final o Vasco com um gol aos 45 minutos do segundo tempo. O gol, marcado pelo meio-campista Márcio Araújo em posição irregular, gerou muita polêmica. Pior, logo após o apito do juiz, ainda no gramado, o goleiro Felipe, do Flamengo, demonstrou não se importar com o fato do gol ter sido irregular e afirmou: "roubado é mais gostoso".
A frase não surgiu do nada. É algo constantemente falado entre
torcedores de diversos clubes do país e revela algo sintomático: pra boa parte
dos torcedores, os critérios de justiça são completamente maleáveis, desde que
favoreçam seu próprio time.
E por que será que aceitamos o resultado de uma partida
mesmo com erros grosseiros de arbitragem? Por que não se joga o campeonato de
novo? Por que o time perdedor espera o ano seguinte para tentar o título? Basicamente,
todos ali entram em acordo sobre as regras do jogo antes de começar a partida
(ou antes de começar o campeonato). Além disso, há a concordância que alguém
legitimado por ambos irá arbitrar sobre as irregularidades, baseado nas regras
acordadas e legitimado sob uma suposta neutralidade.
O exemplo do futebol é meramente ilustrativo, mas a ideia é a
mesma para a política: cidadãos disputam cargos políticos em eleições livres
sob regras previamente divulgadas e acordadas entre os concorrentes. Quem
ganhou governa, quem perdeu espera as próximas eleições para tentar ocupar o
comando.
Mas que regra é essa? É a vontade da maioria? Quer dizer que
democracia representa a vontade da maioria? NÃO!!!!
O quê? Não?
É preciso atenção aqui: democracia não é um tipo de ditadura
da maioria[1],
como podem pensar alguns. Nem sempre o candidato vencedor representa a maioria.
Mesmo contando com a maioria dos votos, há coisas que o vencedor não pode
fazer, mesmo que seja a vontade da maioria. Por isso, mudanças na Constituição
precisam do apoio de 2/3 do parlamento, e as cláusulas pétreas da Constituição
não podem ser alteradas nunca (salvo nova constituinte que elaboraria uma nova
Constituição)!
Outro aspecto importante é que não é preciso que um
candidato seja a preferência da maioria para ser legitimado. Vejamos: desde a
redemocratização, em nenhuma eleição presidencial o(a) candidato(a) obteve a
maioria do eleitorado. Se somarmos os votos de outros candidatos, votos
brancos, nulos e abstenções, o voto do primeiro colocado sempre foi inferior à
maioria. Mesmo se retirarmos as abstenções da conta, mesmo assim o vencedor
nunca obteve uma votação superior à metade do eleitorado no 1º turno.
Indignação seletiva
Os recentes acontecimentos políticos no Brasil vêm mostrando
que nossa democracia e nossas instituições democráticas ainda sofrem pra se
consolidar. Mesmo utilizando o aparato jurídico para derrubar Dilma Rousseff, a
ascensão de Michel Temer à presidência foi feita com base em acordos pra lá de duvidoso.
Além disso, as decisões jurídicas e políticas parecem ter
dois pesos e duas medidas. Como exemplo,
a opinião pública caiu em cima (com razão) da nomeação de Lula para ministro em
meados de março, porém a indignação com os áudios envolvendo políticos do PMDB
e a derrubada dos ministros de Temer (Romero Jucá; Fabiano Silveira; Fábio Medina Osório) ainda não parecem ter ganhado a mesma dimensão.
Se pensarmos o lado oposto, destituído do poder, também
percebemos uma certa indignação seletiva. O afastamento do deputado Eduardo
Cunha (PMDB/RJ) não encontrou resistência da opinião pública, ainda que tenha
sido questionada juridicamente. Quando vimos muitos comentários sobre “duplo twist carpado”
de lei, significa que estão interpretando as leis do modo mais conveniente. Na
decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki que
afastou Cunha, Teori fala muito em excepcionalidade do caso. Aí está o
problema: não podemos esperar que a Justiça julgue um caso como exceção, pela
expectativa da opinião pública, mas as decisões jurídicas deveriam estar
amparadas no regulamento em vigor.
Enfim, como disse o prefeito de São Paulo Fernando Haddad
(PT/SP) em entrevista ao El País, "o problema não está na boa intenção, o problema está na mudança de entendimento com o jogo em curso".
Além da seletividade da Justiça, outro fator que vem nos
impedindo de nos consolidarmos como estado democrático de direito é a indignação
seletiva da população. Um estudo inédito de pesquisadores da FGV-RJ durante as
eleições de 2014 no Facebook, abordada em texto da Folha de S. Paulo[2],
corrobora essa percepção que os brasileiros se indignam apenas com a corrupção
dos outros: “a tendência à punição ao político suspeito de corrupção só ocorreu
quando os valores quanto à economia e aspectos sociais de eleitores e candidato
eram divergentes". Ou seja, o eleitor só pune o candidato corrupto (não
votando nele) se ele tiver valores diferentes dos seus. "Quanto maior a
convergência ideológica, maior a propensão à manutenção do voto".
É isso, nossa democracia continuará manquitolando enquanto
boa parte da população pensar que “roubado é mais gostoso”, que os fins
justificam os meios e que não faz mal a lei punir seletivamente apenas políticos
de posições contrárias à maioria.
E você? É daqueles que esperam que o vilão seja punido pela
lei ou é daqueles que torcem pro vilão apanhar do mocinho na novela?
[1] A discussão sobre democracia é extensa,
com textos relevantes desde Aristóteles. Pra ficar apenas com um, vale muito a
leitura do clássico Poliarquia,
do cientista político norte-americano Robert Dahl: disponível para vender bit.ly/1U99fcO.
[2] Esse texto da Folha é incrível. Ele
aborda nove diferentes pesquisas sobre corrupção que identificam basicamente
que os brasileiros declaram repudiar práticas ilegais até com mais intensidade
que outros países europeus, mas que declaram estar mais em exposição direta a
atos corruptos. Além disso, brasileiros dizem que a maioria das pessoas não é
digna de confiança mais que outros países, e que acreditam que os outros vão
tirar vantagem. Outro ponto importante levantado no texto é que a indignação a
atos corruptos é maior entre pessoas de esquerda que na direita. Além disso, em
casos de bonança de recursos públicos, a corrupção tende a ser mais facilmente
aceita!
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